A situação econômica na Argentina

A pandemia, agravada em 2020, teve um forte impacto sobre as economias mundiais, sendo ainda maior para os países emergentes e principalmente para as economias cujas as quais já vinham fragilizadas. A nossa vizinha, Argentina, é o melhor exemplo desta conjuntura e serve como modelo para outros países sul-americanos, entre eles o Brasil, a não cometerem os mesmos erros econômicos e nem chegarem ao delicado momento vivenciado por lá.


A situação econômica atual argentina é extremamente frágil e percebida pela queda expressiva no PIB durante o último ano de aproximadamente de 10% e a alta taxa de pobreza a qual chegou a atingir mais de 40% da população segundo o Indec (Instituto Nacional de Estatística e Censo da Argentina). A Argentina chegou a essa situação por diversas escolhas equivocadas em sua economia e má administração do próprio governo, neste artigo abordaremos três principais causas para o momento atual do país: a desvalorização da moeda, a alta inflação e o déficit fiscal. 


  1. A desvalorização da moeda e o sistema “bimonetário”


Após a saída do regime militar no final da década de 80, a Argentina saiu com graves sequelas econômicas, como a alta dívida externa, sendo boa parte contraída através do FMI, e a hiperinflação vivenciada durante o período, a qual chegou próxima de 200% em julho de 1989. Para conter a alta generalizada dos preços e estruturar a sua economia, a Argentina tomou diversas medidas cabíveis como o lançamento de um novo plano para a sua moeda, deixando de lado o austral e circulando novamente em sua economia o peso.


Além da nova moeda em circulação, o país decidiu em 1992 através da Lei de Conversibilidade, manter uma política cambial fixa e converter um peso para cada dólar. Ou seja, o governo realizava as trocas cambiais a fim de manter as reservas internacionais em um volume igual ou maior que a base monetária da moeda nacional, com isso mantinha a meta do peso equivalente a um dólar.


Diante deste sistema cambial, por muitos anos o peso argentino se manteve constante em relação ao dólar, o que favoreceu o controle da inflação durante o período e o aumento nas importações. Entretanto, a política cambial fixa trouxe desvantagens à economia argentina entre elas o aumento de empréstimos externos para manter a conversibilidade da moeda e o desequilíbrio na balança comercial, desfavorecendo as exportações dos principais produtos argentinos (trigo, soja, carne e lacticínios) e enfraquecendo a indústria nacional, pois mesmo com o PIB crescendo 6% entre 1991 e 1997, o desemprego aumentou de 6,05% para 13,7% no mesmo período.


O crescimento econômico nos anos 90 não foi o suficiente para o país balancear as suas dívidas entre 2000 e 2001 e com isso a Argentina sofreu uma de suas maiores crises financeiras após a moratória no pagamento de seu financiamento externo. Para reerguer a economia, o país passou a adotar novamente a política de câmbio livre, deixando de lado a política de um peso para um dólar. Mas devido à alta dívida externa, essa mudança levou a uma crise cambial ao desvalorizar em aproximadamente 40% sua moeda nacional em relação à moeda americana. No gráfico abaixo, conseguimos ver a desvalorização da moeda nacional em relação ao dólar até os dias de hoje.


Enquanto antes da Lei de Conversibilidade o peso valia um dólar, hoje o peso equivale a aproximadamente US$0,01, ou seja, uma queda no câmbio na ordem de 100 vezes. Mas o que fez essa desvalorização expressiva durante esse período?



Fonte: Exchanges Rates


        Após a crise no início do milênio, os argentinos acabaram perdendo a confiança na sua moeda devido às más escolhas do Banco Central Argentino em conter a inflação, o que fez os argentinos habituarem-se a comprar dólar para não perderem o poder de compra, o que transformou a economia argentina em um sistema bimonetária. Além disso, as constantes moratórias, o qual serão explicadas posteriormente, aumentaram o risco do país e dificultando ainda mais a entrada de recursos externos.


Ainda assim, a situação da Argentina é ainda mais difícil se analisarmos para o curto prazo. Após o agravamento da pandemia, as reservas cambiais tiveram uma grande queda chegando ao valor bruto de US$ 42,5 bilhões, muitos citam ainda que excluindo o depósito compulsório dos bancos, ouro e swap cambiais, o valor líquido fica próximo de US$ 3,5 bilhões. Para tentar reverter essa situação, o governo argentino aumentou as restrições à venda do dólar, limitando a compra de dólar para US$ 200,00 mensais para cada argentino, já que a hiperinflação é um dos maiores medos da população e leva os argentinos a recorrem à moeda americana frequentemente.


  1. A  inflação descontrolada na Argentina

A assombração dos argentinos com a inflação vem de longa data. O próprio objetivo da política fixa cambial comentada anteriormente, foi de conter a inflação e trazer a estabilidade da sua moeda, entretanto esse fantasma ainda assola os argentinos.


Após a crise cambial em 2001, a Argentina teve um salto em sua inflação, com esse índice próximo dos 35% ao ano e levou à iminente queda do presidente Fernando de la Rúa no poder. Com a fragilidade econômica argentina, o kirchnerismo entrou no poder a fim de reestruturar o país e levar uma melhor situação econômica para a população, o qual conseguiu ter um razoável crescimento econômico, com o PIB aumentando próximo de 6% ao ano de 2003 até 2015. Além disso, o governo de Cristina Kirchner foi marcado por diversas políticas sociais como o aumento da cobertura previdenciária e a implantação do programa  AUH (baseado no Bolsa Família), o que auxiliou a tirar muitos argentinos da linha da pobreza, redução de cerca de 34,1% em 2010.


Entretanto, mesmo com o crescimento do PIB do governo Kirchner, a dívida argentina teve um expressivo crescimento e a inflação também voltou a perseguir no final do segundo mandato de Cristina, sendo próximo dos 22% em 2014. Na imagem a seguir, conseguimos analisar a inflação argentina tendo como base de comparação o próprio Brasil. 


Fonte: INDEC e IBGE


A inflação presenciada durante a era Macri, entre 2015 a 2019, foi ainda maior, o que trouxe mais instabilidade para o país. Mas qual a principal causa deste fenômeno que assola os argentinos?


O principal responsável pela alta generalizada nos preços argentinos é a emissão cada vez maior de moeda na economia para financiar a dívida pública. Com a falta das reformas estruturais e uma política ainda assistencialista, foi necessário mais dinheiro em circulação para o financiamento interno e assim, o peso argentino perdeu seu valor. Como Milton Friedman sempre dizia, a inflação é sempre e em todo lugar um fenômeno monetário.


No período de 2015 ao final de 2019, a base monetária teve um aumento em mais de 300%, já no Brasil o aumento foi de 32%, o que mostra a distorção da quantidade de pesos em circulação. No gráfico abaixo, é possível perceber o aumento da base monetária argentina


Fonte: Banco Central da Argentina 


          Para agravar ainda mais a situação, a pandemia criou um choque entre demanda e oferta o que fez muitas economias se preocuparem com a inflação. No caso da Argentina, o aumento generalizado dos preços foi de 31%, relativamente menor que em 2019, o qual foi 44%, mas ainda continua sendo um grande problema.


A fim de evitar as altas neste ano, o país realizou intervenções na economia, como por exemplo a suspensão da exportação de carne durante o mês de Maio. Esta medida teve como objetivo abastecer o mercado interno e diminuir a inflação de 12 meses que se encontrava em 47%, entretanto essa atitude para o médio e longo prazo pode ser ainda pior ao desestimular a oferta de carne dos produtores. Essa intervenção constante dentro da economia argentina desestimula a economia interna, o que diminui também o crescimento econômico e a arrecadação da máquina pública para o pagamento das suas obrigações atuais.


  1. A Dívida Pública e o Default

           A dívida pública argentina é um dos fatores determinantes para a inflação descontrolada e a grave situação econômica. Historicamente, o país sofre com a alta dívida em relação ao seu PIB e como boa parte deste valor é proveniente de empréstimos no mercado externo, a Argentina possui uma grande dificuldade em aplicar a sua política monetária. O principal fator para isso acontecer é que ao emitir moeda para pagar suas obrigações locais, o peso se deprecia frente ao dólar e aumenta ainda mais a sua dívida externa.

           Os argentinos sofrem com esses ciclos frequentemente, sendo o primeiro deles o default ocorrido em 2001 pela Argentina ao FMI. Após o término da política cambial fixa, os argentinos adotaram a política de câmbio livre o que fez o peso se desvalorizar em 40% ao dólar e com essa forte queda, houve o aumento da sua dívida externa em aproximadamente 4 vezes. A dívida/PIB argentina chegou aos 147%, fazendo os investidores estrangeiros retirarem ainda mais dinheiro e enfraquecendo a economia.


              

Fonte:Banco Central da Argentina 


          Durante o kirchnerismo, o país conseguiu de uma certa forma controlar a sua dívida pública ao alcançar uma dívida em relação ao PIB abaixo de 40%, o que não vinha acontecendo há mais de 10 anos. Mas como o próprio presidente Alberto Fernández citou recentemente em entrevista com Pedro Rosemblat, “A Argentina é um alcoólatra recuperado”, o qual mesmo passando por um momento difícil na dívida pública, continua a se descontrolar após se estabilizar e contraindo ainda mais dívida.

            

Fonte: Banco Central da Argentina 


         Percebe-se nitidamente essa expressão durante o segundo mandato de Cristina Kirchner, onde o déficit público chegou a praticamente 20 bilhões de dólares ao ano. Com as contas públicas deficitárias e o aumento da dívida, o país deu o segundo calote em menos de 13 anos ao estender os prazos para o pagamento de sua dívida externa.


           Após o fim do mandato de Cristina Kirchner e com Macri no poder, existiam esperanças por muitos que a situação poderia melhorar, mas a situação foi ainda pior. Os déficits públicos continuaram e o país teve de recorrer ao FMI para uma ajuda financeira com o intuito de frear a desvalorização do peso em relação ao dólar e no final de seu mandato a dívida pública chegou a 90% do seu PIB.


            Na volta de Cristina Kirchner no poder, agora como vice presidente, o país já estava em uma situação muito extrema e somado a situação sanitária devido a pandemia, não houve outra atitude além de dar o terceiro calote nos fundos exteriores em menos de 20 anos, no que resultou em um estado comprometido totalmente em suas dívidas e com dificuldades para seguir caminhando com as próprias pernas.


           A Argentina chegou até esse ponto de uma economia tão fragilizada por diversos equívocos econômicos como uma política cambial fixa que fez o peso perder valor frente a outras moedas, impressão de mais moeda para financiar a dívida e a má administração das contas públicas ao apresentar déficits consecutivos. Com uma moeda desvalorizada, inflação descontrolada e a dívida pública a aumentar, a situação é muito delicada a ponto de não se ver um futuro próspero no curto e médio prazo.



Referências


Banco Central da Argentina
Disponível em: http://www.bcra.gov.ar/


Agência EFE, La deuda externa de Argentina bajó en 2020 pero aún sigue siendo un lastre

Disponível em: 

https://www.efe.com/efe/espana/economia/la-deuda-externa-de-argentina-bajo-en-2020-pero-aun-sigue-siendo-un-lastre/10003-4500850


Country Economic, Argentina Government budget deficit

Disponível em: https://countryeconomy.com/deficit/argentina


Brookings, Argentina in Default: Why 2014 Is Different from 2001

Disponível em: https://www.brookings.edu/blog/up-front/2014/08/05/argentina-in-default-why-2014-is-different-from-2001/


Governo Argentino, Presentación gráfica de la deuda

Disponível em: https://www.argentina.gob.ar/economia/finanzas/presentaciongraficadeudapublica


José M. Bulacio, El déficit fiscal en Argentina y sus consecuencias macroeconómicas

Disponível em: https://aaep.org.ar/anales/pdf_01/bulacio_ferullo.pdf


Ministerio Trabajo y Economía Social de la España, La inflácion es un problema de todos

Disponível em: https://www.mites.gob.es/ficheros/ministerio/mundo/revista_ais/175/6.pdf


Economipedia, La inflación en Argentina: una explicación monetaria

Disponível em: https://economipedia.com/argentina/la-inflacion-en-argentina-una-explicacion-monetaria.htm


Folha de São Paulo, Câmbio fixo eleva desemprego argentino
Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/dinheiro/fi1007200016.htm

El País, A crise perpétua da Argentina
Disponível em: 

https://brasil.elpais.com/economia/2021-03-01/a-crise-perpetua-da-argentina.html


Fernando Ulrich:
Por que a Argentina fracassou

O peso argentino está morrendo

Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=vFkmHknmqQ4


A Argentina vai quebrar. De novo.

Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=F1nlOuJZi0A&t=2s


BBC, A derrocada Argentina

Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-49571729


Posted by Ricardo Pering dos Santos

Analista do núcleo de Macroeconomia e Renda Fixa no Clube de Finanças UDESC & UFSC

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